Ao explorar o acervo da Brasiliana Iconográfica por assunto, um dos temas que aparece em destaque é a coleção de Alexandre Rodrigues Ferreira, pertencente à Biblioteca Nacional. Este naturalista, nascido na Bahia, chefiou a Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá no final do século XVIII. A expedição percorreu mais de 39 mil quilômetros e durou quase 10 anos (de 1783 a 1792). Sobre ela, veja o post publicado aqui no portal.
Na equipe de Ferreira, estavam os desenhistas portugueses Joaquim José Codina e José Joaquim Freire – autores dos mais de 600 desenhos que podem ser consultados no Brasiliana Iconográfica.
Sobre Joaquim José Codina não há muita informação. Não se tem certeza nem mesmo da data e do local de sua morte. Alguns pesquisadores afirmam que ele morreu no Brasil durante a expedição, outros defendem que voltou para Lisboa ao final da missão científica, em 1793.
José Joaquim Freire, ao contrário, teve carreira conhecida e documentada. Nascido em Belas, freguesia de Sintra, em 1760, foi aprendiz do artista João de Figueiredo na Fundição do Real Arsenal do Exército, uma das principais escolas de desenho em Portugal naquela época. É importante destacar que Portugal só veio a ter uma escola de belas artes em 1836. Até então, todo treinamento artístico se dava nas manufaturas e oficinas, baseado num aprendizado técnico. Freire foi treinado no Arsenal nas técnicas do desenho militar. Aos 20 anos, foi contratado pelo Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, instituição criada pelo naturalista italiano Domingos Vandelli, que pretendia reunir ali informações científicas sobre a flora e fauna das colônias portuguesas. Para isso, ele idealizou as “viagens filosóficas”, expedições científicas patrocinadas pelo governo português para suas colônias na América, África e Ásia.
No Jardim Botânico, Freire passou a produzir desenhos mais ligados à história natural, especialmente à botânica. Em 1783, seguiu para a longa expedição amazônica na qual, junto com Codina, produziu desenhos e aquarelas registrando povos indígenas e seus costumes, animais, construções, máquinas, utensílios e prospectos. Realizou, sobretudo, registros botânicos (mais da metade). O grande número de ilustrações de árvores e plantas é atribuído à intenção do governo português tinha de investigar as potencialidades econômicas da flora amazônica.
Os desenhos de Freire feitos no Brasil também revelam aspectos políticos e econômicos da região amazônica nos séculos XVIII e XIX. Sabe-se, por exemplo, que a Viagem Filosófica tinha, entre outros, o objetivo de demarcação de território. Tratados firmados entre Portugal e Espanha defendiam que as fronteiras territoriais das colônias americanas seriam definidas com base na ocupação efetiva dessas áreas.
Na vista da Vila de Cametá, feita por Freire a partir do Rio Tocantins (abaixo), é possível ver a política de urbanização implementada pelo Marquês de Pombal com a finalidade de reforçar a presença portuguesa na região. Junto às casas alinhadas à margem do rio, observa-se as principais construções que caracterizam a colonização portuguesa: uma casa de câmara (poder civil), uma igreja matriz (poder religioso) e o quartel general (poder militar).
Uma curiosidade da cena que mostra a chegada do Governador do Estado, Martinho de Souza e Albuquerque, é a participação, em primeiro plano, do próprio desenhista, que se autorrepresenta em ação no canto esquerdo do desenho.
Freire desenhou muitos outros prospectos de vilas na Amazônia. O prospecto é um modelo de representação de cidades que vem da tradição militar. Sua principal finalidade é descrever e comunicar com precisão, portanto, não comporta interpretações pessoais do artista. Por isso, frequentemente, os prospectos vem acompanhados de longas legendas descritivas, que complementam a informação visual.
Com o término da expedição amazônica em 1792, Freire retornou a Portugal e ao trabalho no Jardim Botânico da Ajuda, onde se revelou habilidoso cartógrafo. Ao lado de Manoel Tavares da Fonseca, atuou na redução dos mapas criados no Brasil. O resultado desse trabalho foi a Carta Geográfica de Projeção Esférica Ortogonal da Nova Lusitânia ou América Portuguesa, e Estado do Brasil, importantíssima para a defesa territorial da colônia portuguesa.
Em 1798, José Joaquim Freire ingressou de fato na carreira militar chegando ao posto de Coronel ao final da vida, em 1847. Ao longo desses anos, atuou ativamente na produção cartográfica e participou de combates, como na Guerra Peninsular, na qual foi encarregado da linha telegráfica, e na Revolução Liberal de 1820, que exigia o retorno de D. João VI a Portugal.
Como era comum entre os engenheiros militares portugueses, Freire desempenhou múltiplos papéis, chegando a inventar uma carruagem para tirar pessoas de incêndios. Foi também empresário, já que criou e instalou no Rio Tejo barcas de banho. Eram casas flutuantes nas quais os banhistas tinham acesso a varandas de madeira e lugar para se trocar. Simpatizante do liberalismo, propôs ao governo português a criação de um banco nacional, que resultou na fundação do Banco de Lisboa (tendo Freire como um dos acionistas).
A trajetória de José Joaquim Freire é representativa desse momento nos séculos XVIII e XIX, em que arte e ciência convergem na tentativa de explicar o mundo visível. Com seu treinamento de engenheiro militar, ele pode colocar sua habilidade para o desenho a serviço do governo português, tornando visível para a metrópole os diversos aspectos da natureza de sua colônia americana.