Muitos dos artistas estrangeiros que visitaram o Brasil no século XIX dedicaram-se a registrar os diferentes aspectos da escravidão. Ainda que o tráfico negreiro tenha sido proibido em 1831, grande quantidade de negros escravizados desembarcavam ilegalmente nos portos brasileiros e circulavam pelos campos ou pelas cidades. Essa situação chamou a atenção dos viajantes que vieram para cá com o objetivo de mostrar, por meio de desenhos e relatos, as particularidades econômicas, políticas e sociais do país. No caso do dinamarquês Paul Harro-Harring, foi para denunciar as injustiças e a violência da escravidão que ele veio ao Rio de Janeiro, em 1840.
Nascido em 1798 na cidade de Ibensdorf (então território dinamarquês, hoje cidade alemã), Harro-Harring estudou pintura na Academia de Belas Artes de Dresden, onde se especializou em registros de batalhas. Foi influenciado pelo romantismo, que caracteriza a obra do pintor alemão Caspar David Friedrich, e pelos conceitos de nação, povo e classe que permearam os ideais românticos da época. Passou boa parte da vida defendendo causas revolucionárias, a maioria delas lutas nacionalistas: em 1821, integrou a Legião Filohelelênica, que lutava pela independência da Grécia contra os turcos; em 1834, envolveu-se na invasão de Savóia, liderada por Giuseppe Mazzini, um dos criadores dos movimentos de unificação dos estados italianos, como a Jovem Europa.
Anos mais tarde, Harro-Harring passou a colaborar com o jornal inglês abolicionista The African Colonizer, que o enviou ao Brasil para registrar, com imagens e textos, a condição dos escravizados. A estadia de três meses no país resultou em um conjunto de 24 aquarelas intitulado Tropical Sketchers From Brazil [Esboços Tropicais do Brasil], cenas do cotidiano que demonstram a tensa relação entre senhores e cativos. Os títulos das imagens, bastante informativos, ajudam-nos a recompor essas cenas, quase teatrais, que na maioria das vezes representam uma injustiça que tinha acontecido ou que estava prestes a acontecer. A violência e os maus-tratos sofridos pelos escravizados aparecem em situações de humilhação comuns no Brasil do século XIX: o momento do desembarque do navio negreiro, a avaliação dos senhores no mercado de escravos, a acusação de roubo ou de fuga, castigos, abusos sexuais, entre outras
Marcadas pela cor azul, as aquarelas têm traços bem característicos. Em A travessia da Calunga Grande: Três séculos de imagens sobre o Negro no Brasil. (1637-1899), texto publicado por Lilia Schwarcz na Revista de Antropologia, a historiadora comenta que “Harro-Harring, que passou longe do retrato mais idealizado e preferiu o desenho impiedoso que condena a escravidão. Isso sem falar das caricaturas, que estabelecem uma relação ambivalente entre o artista, o público e aquele que é retratado: se, de um lado, satirizam e criticam, de outro, aproximam e, por meio da ironia, criam uma certa convivência e proximidade”.
Em janeiro de 1841, a primeira e única aquarela de Harro-Harring publicada no The African Colonizer foi La negresse accusée de de vol [Negra acusada de roubo], O registro foi acompanhado pelo relato do viajante, narrando uma situação em que uma escravizada foi incriminada injustamente de roubo. No texto, ele deixa claro seu incômodo diante da condição dos cativos: “O indiscutível caráter da acusada, que ganhou nossa admiração, obrigou o brasileiro a reconhecer sua mais completa honestidade. (...) Voltei para o meu lar europeu e a minha solidão, tão logo os negócios que me levaram ao Rio de Janeiro o permitiram, mas ainda refletindo sobre o ocorrido. Tudo era novidade para mim e serviu para revelar-me alguns traços do caráter daquela raça oprimida, que me encheram de surpresa e respeito. Não conseguia retomar meus afazeres normais. Era como se a mão de um pintor se visse impedida de trabalhar em virtude de suas amargas lembranças. O duro destino do povo negro, eternamente exposto ao extremo insulto e à baixeza dos brancos, me perseguia, conquanto este mesmo sentimento era aliviado pelo contraste representado pelos bons e nobres atos daquela irmandade negra”.
Ainda que não tenha sido publicada no jornal, a imagem que mostra uma inspeção de negras desembarcadas da África é uma das mais conhecidas do artista. Na aquarela, três mulheres recém-chegadas ao Brasil passam por uma humilhante avaliação de possíveis compradores. Amarradas, as escravizadas tentam se esquivar de serem apalpadas ou cutucadas com um guarda-chuva.
Harro-Harring voltou ao Brasil em duas outras ocasiões: em 1842, por 15 meses, por conta das rebeliões contra a monarquia; e entre 1854 e 1855, como refugiado político, de acordo com cartas trocadas com Paul Leuzinger, filho do fotógrafo suíço George Leuzinger. Essa mesma correspondência confirma que em 1861, Harro-Harring estava de volta à Europa, na ilha inglesa de Jersey, onde foi encontrado morto anos depois, em 1870. O dinamarquês, que no final da vida sofreu com problemas mentais, suicidou-se bebendo um chá com cabeças de fósforos.
Além de pintor, Harro-Harring foi poeta, escritor e político. Escreveu peças de teatro e romances, como Dolores – ein Charaktergemaelde aus Suedamerika [Dolores, um perfil típico da América do Sul], que tinha como pano de fundo a fundação de uma grande nação republicana na América do Sul, chamada República dos Estados Unidos da América do Sul.