O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a independência da Bélgica conquistada em 1830, quando se separou do Reino Unido dos Países Baixos. Essa rápida aproximação com a jovem nação aconteceu pela necessidade do governo brasileiro de se relacionar com outros novos países que, assim como ele, precisavam se firmar como independentes na configuração internacional que se estabelecia naquele momento. Havia ainda a intenção de transformar o porto da Bélgica numa porta de entrada dos produtos brasileiros na Europa Central.
Mas a Bélgica também tinha seus interesses no mercado brasileiro e, por isso, foi aqui que abriu seu primeiro posto diplomático da América Latina. Para ocupar a embaixada e negociar um tratado de comércio que desse aos produtos belgas o mesmo tratamento dado às mercadorias holandesas, o reino de Leopoldo I enviou ao Brasil o ministro dos negócios estrangeiros Benjamin Mary.
O belga chegou ao Rio de Janeiro em 1834, aos 42 anos, e se instalou no bairro do Catete, assim como muitos outros diplomatas que se mudavam para o Brasil na época. Mary foi apresentado a D. Pedro II, então com nove anos, em uma cerimônia no Palácio de São Cristóvão, e descreveu o imperador como pequeno, pálido e fraco de saúde, mas uma figura interessante e com olhos espirituosos. Em apenas seis meses, o diplomata, que era também desenhista e estudioso de botânica, conseguiu firmar o tratado de comércio. Teve seu trabalho reconhecido pelo império brasileiro, a ponto de receber a Ordem Imperial do Cruzeiro (hoje Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul). Ficou no Brasil até 1838, aprendeu a falar português, viajou pelos arredores do Rio de Janeiro, incluindo Paraty e Ubatuba, e fez incursões pela Floresta da Tijuca, Serra dos Órgãos e Serra d’Estrela.
Treinado desde a infância por um tio para reconhecer e classificar espécies botânicas, Benjamin Mary aprendeu também fundamentos de desenho e gravura, utilizados por toda a vida para registrar as paisagens dos lugares que visitava. As mais de 300 paisagens que desenhou durante o período em que viveu no Brasil são curiosamente vazias de personagens, mas demonstram com clareza o interesse deste artista amador pelos diferentes aspectos da flora do país. Mary valoriza a diversidade de espécies que enxerga na natureza brasileira, dando especial ênfase às formações vegetais mais curiosas, como a araucária, ou a árvores frutíferas mais exóticas, como a jaqueira. Nesse sentido, entre as quinze obras de Mary disponíveis na Brasiliana Iconográfica, destaca-se o panorama do Rio de Janeiro. Composto por sete aquarelas coladas umas às outras, o trabalho ultrapassa os três metros de comprimento. A vista da cidade, tomada a partir do morro de Santa Teresa, serve de pano de fundo para uma espécie de mostruário de espécies vegetais da flora local, que ocupa todo o primeiro plano da pintura.
A habilidade de Benjamin Mary em documentar as diferentes fisionomias da natureza brasileira chamou a atenção do naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, que utilizou alguns trabalhos do diplomata belga em Flora Brasiliensis, obra editada entre 1840 e 1906 e referência no estudo da botânica brasileira até hoje. Os registros serviram como base para a confecção de muitas litografias da publicação: entre as 59 pranchas do primeiro volume da publicação, 14 são assinadas por Mary. Na descrição de uma das imagens, Martius ressalta que “também essa gravura se deve ao talento de Benjamin Mary. Como prestou notáveis serviços na descrição da vegetação brasileira, parece que ele pode exigir, com toda a justiça, do espírito gratíssimo do amigo, que - uma vez que nos apresenta a ocasião - cultivemos viva a sua memória”.
Mary era formado em Direito pela Academia de Bruxelas e teve aulas de litografia no Musée Central de Minéralogie, com Charles Senefelder, irmão de Alois Senefelder, inventor da técnica de impressão litográfica. Antes de morar no Brasil, viajou para a Itália, e teve aula com François-Marius Granet, pintor francês que pode ter influenciado Mary nos efeitos de luz em registros feitos em sépia. De volta à Bélgica e morando em Namur, foi membro do Conselho Provincial e secretário do Comitê da Indústria e do Comércio. Eleito deputado suplente, teve sua atuação na política belga encerrada ao ser enviado ao Brasil como diplomata. Em 1838, quatro anos depois de sua chegada, foi transferido para a Grécia, onde também registrou paisagens e retratos. Assim como no Brasil, aprendeu a falar a língua local, e estudou a história e a arqueologia grega. Quando voltou para a Bélgica, em 1845, presenteou o rei Leopoldo I com um álbum de desenhos do Brasil. Pouco tempo depois, encontrou com o embaixador belga na França, o príncipe De Ligne, que relatou em uma carta os primeiros sinais de doença do colega diplomata. Alertando para uma grande alteração das faculdades mentais, De Ligne descreveu que Mary tinha mania de fazer retratos de desconhecidos e de exibir seus rascunhos como se fossem grandes desenhos. Depois desse episódio e de visitar um médico, Benjamin Mary foi para uma estação termal nos Pirineus, onde morreu por conta de um acidente vascular cerebral.
A produção artística de Benjamin Mary foi pouco divulgada até hoje. Recentemente, Valéria Piccoli, Carlos Martins e Eddy Stols mergulharam na documentação iconográfica do artista e publicaram o livro O Diplomata e Desenhista Benjamin Mary e as Relações da Bélgica com o Império do Brasil, que serviu como fonte de pesquisa para este artigo. Talvez a maior dificuldade para estudar a obra completa do belga seja reunir seu acervo. As imagens de autoria de Mary presentes na Brasiliana Iconográfica estão preservadas nos acervos da Pinacoteca do Estado de São Paulo, da Coleção Brasiliana Itaú e do Instituto Moreira Salles. A obra do desenhista, no entanto, está dispersa em várias outras coleções brasileiras (como a do Museu Imperial e a da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano) e estrangeiras (como a da Bibliothèque Royale de Belgique e a Martiusiana da Biblioteca do Estado da Baviera). Os trabalhos estão, geralmente, divididos em pequenos álbuns ou cadernos de desenhos, mas há também registros avulsos, muitos deles com dedicatórias, o que reforça a ideia de que eram registros considerados de natureza privada e não necessariamente pensados para divulgação ou colecionismo.