Após mais de 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil, a figura de d. João VI ainda não é consenso entre historiadores e pesquisadores. Embora sua atuação política tenha, em geral, uma avaliação positiva, sua descrição é, na maioria das vezes, bastante caricata. “A grande imagem que ficou de d. João apresentada pelos livros didáticos, filmes e memórias foi a de um rei tolo, bobo e indeciso”, analisa a historiadora Marieta Pinheiro de Carvalho no texto D. João VI: Perfil do Rei nos Trópicos, publicado no site da Biblioteca Nacional. Reunimos neste artigo alguns registros de d. João VI e de outros personagens que permearam sua vida. São desenhos, pinturas e uma escultura que nos ajudam, ao lado de notas biográficas, a traçar um perfil do monarca.
João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antônio Domingos Rafael nasceu no Palácio Real da Ajuda, próximo a Lisboa, em 1767. Era um dos cinco filhos de d. Maria I, rainha de Portugal, e de d. Pedro III. Educado por frades e muito religioso, tinha paixão pela música sacra. Seu casamento em 1785 com a filha do rei da Espanha, Carlota Joaquina, então com 10 anos de idade, foi resultado de uma política de aproximação entre os dois países ibéricos.
A morte precoce de seu irmão mais velho, d. José – herdeiro natural do trono –, acelerou a entrada de João no cenário político português. Em 1792, o príncipe d. João assumiu provisoriamente o governo quando sua mãe, dona Maria I, foi afastada do trono por “incapacidade e demência” (pesquisas recentes, como a da historiadora Mary Del Priore, revelam que muito provavelmente a rainha sofresse de uma grave depressão, acentuada pela perda do filho e de outros parentes próximos. Naquele tempo, a doença era interpretada como uma loucura diabólica). Anos mais tarde, em 1799, d. João foi finalmente alçado à posição de príncipe regente de Portugal.
Embora tenha tido nove filhos com Carlota Joaquina – Maria Teresa, Francisco Antonio (morto ainda criança), Maria Isabel, Pedro (o primeiro imperador do Brasil), Maria Francisca, Isabel Maria, Miguel, Maria da Assunção e Ana de Jesus Maria –, o casal vivia em pé de guerra. Assim como a mãe, o príncipe tinha constantes crises de depressão. Numa delas, em 1805, quando se afastou da vida pública, Carlota Joaquina tentou dar um golpe de Estado alegando incapacidade mental do marido. O conluio não vingou e a convivência entre o casal ficou ainda mais instável.
Durante o expansionismo napoleônico, d. João fez grandes esforços para manter uma política neutra, mesmo quando as disputas entre França e Inglaterra se acirraram. A situação começou a ficar insustentável quando a França exigiu que Portugal aderisse ao bloqueio continental contra os ingleses. A economia portuguesa, dependente da relação com a Inglaterra, não suportaria. Foi assim que, com o apoio inglês, mas sem se declarar contra Napoleão de imediato, d. João decidiu transferir a corte portuguesa para a maior de suas colônias, o Brasil.
D. João carioca
A viagem da corte portuguesa ao Brasil durou 54 dias e transportou mais de 10 mil pessoas. No dia 22 de janeiro de 1808, d. João chegou a Salvador, onde determinou a abertura dos portos às nações amigas, decisão que já beneficiava os ingleses. Depois de uma breve estadia na Bahia, o príncipe seguiu para o Rio de Janeiro. Instalou-se no Largo do Carmo, no antigo Palácio dos Vice-Reis, que se tornou o Paço Real. E nesse mesmo ano recebeu como doação a casa de campo do comerciante luso-libanês Elias Antônio Lopes, que mais tarde tornou-se a morada oficial da família real, o Palácio de São Cristóvão.
A chegada da corte fez com que o clima político no Brasil ficasse bastante instável, sobretudo entre as lideranças das capitanias das regiões Norte e Nordeste, para as quais “a vinda da família real representou apenas o aumento do número de impostos, visando suprir as altas despesas da corte no Rio de Janeiro”, explica Marieta Pinheiro de Carvalho. Em 1817, depois que o Brasil foi elevado à condição de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, eclodiu em Pernambuco uma revolução de caráter republicano e separatista. Além disso, a questão da Cisplatina e o tema recorrente do fim do tráfico de escravizados ocupavam o governo. Esses foram alguns dos motivos que atrasaram a aclamação de d. João, que só se tornou rei em 1818, dois anos após a morte da rainha dona Maria I. A espera pela chegada da então princesa Leopoldina ao Brasil para se casar com d. Pedro também foi um dos motivos da espera para sua coroação.
A cerimônia que transformava o príncipe em rei d. João VI foi realizada no paço da cidade. Uma grande varanda foi construída provisoriamente diante do Convento do Carmo para que o povo visse a consagração de seu novo rei. A abertura das cerimônias oficiais para o público tinha a intenção de aproximar a imagem do soberano de seu povo e foi uma prática adotada por d. João durante todo o seu reinado. As audiências públicas e a cerimônia do beija-mão, por exemplo, contribuíram para a construção de uma imagem paternal em torno de sua figura.
A aclamação foi registrada por Jean-Baptiste Debret, um dos artistas mais célebres da Missão Francesa, e foi posteriormente gravada para sua divulgação na Europa. O retrato abaixo, no qual o então novo rei exibe os trajes da cerimônia, deriva de um estudo a óleo de Debret. Supõe-se que esse estudo daria origem a uma obra de maior dimensão nunca concretizada. Segundo Pedro Corrêa do Lago e Julio Bandeira, em Debret e o Brasil, “Debret sempre esperou que d. João VI e, depois dele, d. Pedro I, adotassem a prática que conhecera na França Imperial, de encomendar quadros comemorativos de grande dimensão que celebrassem os grandes eventos da monarquia portuguesa”. Entretanto, é importante considerar que Debret conhecia o potencial de disseminação da imagem que a gravura proporciona e fez gravar o retrato pelo seu colega de Missão Francesa, Simon Pradier. A obra, impressa na França, circulou pelas cortes europeias, apresentando a continuidade da monarquia num reino de além-mar.
Em 1820, a instabilidade política tomou conta de Portugal, exigindo o retorno do rei, o que ocorreu no ano seguinte. Levou com ele – além da saudade mencionada no decreto de 22 de abril de 1821 – mais de 60 milhões de cruzados em barras e moedas de outro e os diamantes que estavam nas casas-fortes do Banco do Brasil.
Pedro, seu filho e futuro imperador, permaneceu no Brasil como regente e, mais tarde, inaugurou um novo momento da política brasileira com a proclamação da Independência. Em Portugal, d. João teve de jurar a Constituição das Cortes Portuguesas, o que limitou seus poderes e direitos. Passou a residir no Palácio de Queluz e, depois, no Paço da Bemposta. Daí até sua morte, em 1826, sofreu com novas tentativas de golpe de Carlota Joaquina, apoiadas pelo filho d. Miguel. O rei faleceu aos 58 anos no dia 10 de março – e há indícios de que tenha sido envenenado.
Um rei, muitas interpretações
Como dito anteriormente, as interpretações sobre a atuação política e a aparência de d. João variam bastante. “Era um homem de hábitos”, relatou o artista Manuel de Araújo Porto-Alegre. “Se uma vez dormia em um lugar, jamais queria dormir em outros (...). Qualquer mudança que experimentasse, desconfiava dela e aborrecia-se com quem a fizesse.” No filme brasileiro Carlota Joaquina – Princesa do Brasil, o rei, interpretado pelo ator Marco Nanini, aparece gordo, preguiçoso e guloso. O jornalista e escritor Laurentino Gomes o definiu como “medroso, tímido, supersticioso, feio e indeciso. Espremido entre grupos de opiniões conflitantes, relutava até o último momento a fazer escolhas”, mas ressaltou que ele foi o único soberano capaz de enganar Napoleão Bonaparte. Sua fisionomia foi também destacada por Pedro Corrêa do Lago ao analisar a representação iconográfica de d. João: “Não resta dúvida de que o físico do rei fosse particularmente ingrato, segundo todos os relatos da época, mas alguns retratos parecem temperar a sua feiura e outros têm a coragem de permanecer mais fiéis aos traços desgraciosos do monarca”.