"Em meados do século XIX, e ao menos até a crise que resultou na lei de 1871, o Brasil Imperial oferecia ao mundo o curioso espetáculo de um país no qual todos condenavam a escravidão, mas quase ninguém queria dar um passo para viver sem ela", escreveu o historiador Sidney Chalhoub (In: CHALHOUB, Machado de Assis, Historiador, Companhia das Letras, 2003).
Neste dia 28 de setembro, comemoram-se os 150 anos da promulgação da Lei do Ventre Livre. A Lei de 1871, como também é conhecida, declarava livres as filhas e os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data, além de definir novas regras para os escravizados comprarem sua própria alforria, mas na prática a lei teve pouco efeito.
As crianças que nasciam deviam ficar sob a tutela dos proprietários de sua mães até a idade de oito anos, quando poderiam ser entregues ao governo imperial, que teria que pagar uma indenização ao senhor de escravos, ou prestar serviços ao proprietário de sua mães até os 21 anos de idade, quando finalmente seriam livres de fato para ir e vir. Quem escolhia o destino da criança era o senhor de escravos. Como o Império estava falido, não podia pagar indenizações e assim pouco mudou para essas crianças que completaram 21 anos com a abolição da escravidão já declarada quatro anos antes, em 1888.
A lei de 1871 foi aprovada após anos de discussões porque crescia a pressão sobre o Brasil por ser o único país a ainda manter o regime de escravidão. Os parlamentares conservadores, por exemplo, defendiam que não seria preciso abolir a escravidão, já que desde a lei de 1850, que finalmente cerceou o tráfico para o Brasil, a população de escravizados vinha caindo, com as mortes superando os nascimentos. Uma ideia, sem dúvida, perversa, que corrobora a afirmação do historiador Sidney Chalhoub reproduzida acima.
A data nos permite olhar com mais atenção para o modo como as crianças escravizadas foram representadas pelos artistas europeus que estiveram no Brasil no século XIX. Muitos deles as retrataram em cenas da vida cotidiana, em atividades nas ruas ou atadas às suas mães, como podemos ver abaixo em obras do inglês Henry Chamberlain (1796-1844), do alemão Eduard Hildebrandt (1818-1869) e do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848).
O alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) mostrou crianças reunidas em um contexto mais doméstico, vigiadas da casa-branca por uma senhora branca. Já a inglesa Marguerite Tollemache (1818-1896) fez em 1854 um desenho que parece bastante afetivo, em que as crianças escravizadas são protagonistas e nomeadas: Leopoldina, Justinho e Theresina.
Mas muitos também retrataram as crianças em situação de mais violência, nos mercados de escravos, como o artista abolicionista dinamarquês Paul Harro-Harring (1798-1870), e de novo Chamberlain e Debret.
Mais é sobretudo nas imagens de Debret que a convivência ambígua das crianças escravizadas com os senhores de escravos fica mais explícita. Em sua famosa gravura Le Diner (o jantar, abaixo), podemos ver crianças negras participando da refeição de seus senhores em uma situação que o artista descreve de maneira desconcertante e cruel.
"No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o 'tête-à-tête' de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. Esses molecotes mimados até a idade de cinco ou seis anos são, em seguida, entregues à tirania dos outros escravos, que os domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças, revoltadas por não mais receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice, repentinamente contrariada, leva a saborear com verdadeira sofreguidão" (In: DEBRET, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2016).
Por mais ultrajante que soe nos dias de hoje, a descrição de Debret, publicada na década de 1839, nos dá a dimensão de como essas crianças viviam ao sabor de favores, do paternalismo e da crueldade de seus senhores. E isso, como vimos, não mudou mesmo depois da aprovação da Lei do Ventre Livre.