Além das muitas gravuras que fazem referência à vida cotidiana no Rio de Janeiro no início do século XIX, o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que veio ao Brasil como professor de pintura histórica e pleiteava o posto de pintor da corte, se dedicou também a registrar os momentos históricos mais importantes dos Bragança no país.
Assim, as celebrações no Rio de Janeiro da Independência do Brasil, cujos 200 anos se comemoram agora, não poderiam passar longe do lápis de Debret. Ele criou a imagem da aclamação de D. Pedro I, que ocorreu em 12 de outubro de 1822, bem como da coroação do novo imperador, em 1 de dezembro do mesmo ano, e pintou um pano de boca (tela que ocupa toda a boca de cena de um teatro, à frente da cortina) para marcar o novo momento da história.
Todas essas imagens se tornaram gravuras em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado na França a partir de 1834. A interpretação que o artista francês fez dos fatos históricos nessas gravuras revelam algumas peculiaridades.
Na gravura acima, que representa o momento da aclamação do novo imperador, alguém no balcão segura a bandeira do novo Império brasileiro, mas ela ainda não estava pronta, o que só aconteceria cerca de um mês depois. "Foi somente após a realização dessa cerimônia que D. Pedro ordenou a confecção da bandeira, tendo o próprio imperador grande participação na escolha dos elementos que a deveriam compor, ao lado de Debret", escreve a historiadora Elaine Dias, em sua tese Debret, a pintura de história e as ilustrações de corte da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (Unicamp, 2001).
Ao lado de D. Pedro, no centro da imagem, podemos ver as personalidades que tiveram papéis decisivos na independência, como a Imperatriz D. Leopoldina (1797-1826), o presidente do Senado da Câmara Municipal, José Clemente Pereira (1787-1854), ao lado da bandeira, e José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). Em primeiro plano é possível ver, voando no ar, folhetos com a palavra "aceito" e abaixo, espalhada no Campo de Sant'Anna, a multidão composta por negros e brancos que festejam o novo imperador, aceito por todos. Assim, Debret compõe a imagem que ajudou a registrar no inconsciente coletivo dos brasileiros o apoio inconteste que a nova monarquia teria tido no país.
Não menos alegórica é a imagem da coroação de D. Pedro feita por Debret, escolhida, não à toa, para ser pintada, em 1828, em um quadro de grandes dimensões que hoje se encontra no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Ajoelhado diante do imperador está o novo presidente do Senado da Câmara Municipal, Lucio Soares Teixeira de Gouveia (1792-1838), quase no centro da monumental igreja barroca, durante a leitura do juramento. A capela imperial é retratada com grandiosidade e os principais membros do clero estão ao lado do imperador, em um degrau mais alto. A composição clássica da imagem remete à pintura A Coroação de Napoleão, do artista Jacques Louis David (1748-1825), que era o pintor oficial da corte francesa e primo de Debret. Mas alguns detalhes mantidos por este último dão o toque brasileiro à cerimônia: a coroa na cabeça de D. Pedro, suas botas de cavalaria e seu manto verde americano, como escreve Debret. Usar botas no lugar de sapatos era um diferencial com que D. Pedro aparece em vários de seus retratos, marcando sua imagem de um rei-soldado, além disso, a coroa na cabeça rompe com a tradição portuguesa de representá-la sempre ao lado do monarca.
"A escolha do verde americano para a cor do manto imperial brasileiro justifica-se pela sua própria denominação, a qual lhe garantia de antemão direitos incontestáveis à decoração do novo trono do Brasil. Com efeito, sob o nome de cores imperiais do Brasil entende a união do verde ao amarelo, matizes prodigalizados pelo patriotismo desde o palácio do soberano até ao armazém do negociante. Quanto à forma do manto imperial, talvez um pouco estranha para o europeu, já se achava ela nacionalizada no Brasil há três séculos, pois é imitada do poncho, único manto usado em toda a América do Sul. Nada há a contestar, por conseguinte, na forma e na cor do manto imperial aqui desenhado", escreveu Debret, no texto em que descreve a gravura acima e em que compara os mantos, cetros e coroas da Corte portuguesa com os do novo império brasileiro (In. DEBRET, J.B, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2016, pág. 463).
Se nas representações acima já vemos a importância que Debret dava às alegorias que sabia estar criando para serem eternizadas, o tom de celebração fica ainda mais evidente na pintura que fez para o pano de boca de cena do Teatro S. João (abaixo) inaugurado no espetáculo de comemoração da coroação de D. Pedro.
Neste trabalho, orientado por José Bonifácio, Debret conta que deixou de lado as palmeiras que sustentavam o trono e as substituiu por figuras clássicas. "A composição foi submetida ao primeiro ministro José Bonifácio que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular a fim de não haver nenhuma ideia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas", escreveu (cariátides são figuras femininas que funcionam como colunas de sustentação na arquitetura). As palmeiras foram deslocadas para o fundo da tela, para conferir a "cor local" junto com uma cornucópia que derrama frutas tropicais e o mar que avança na frente do trono. Na lateral esquerda, uma barca carregada de sacas de café e de cana-de-açúcar.
Uma figura feminina coroada representa o governo imperial e tem nas mãos as tábuas da Constituição, promulgada somente em 1824. O "P" coroado de D. Pedro está acima do trono, segurado por anjos, ou, na descrição de Debret, gênios alados, que têm nas mãos a faixa que anuncia o Império do Brasil, junto com as trombetas que saltam do interior da cúpula.
Apesar de todos esses elementos clássicos misturados aos tropicais, o que mais chama a atenção na obra é a representação do "povo brasileiro" apoiando o novo império. Como se a imagem não bastasse, Debret não mede palavras para descrever a cena: "Índios armados e voluntariamente reunidos aos soldados brasileiros enchem o fundo do templo fechado por uma tapeçaria e rodeiam o trono.(...) Ao lado, na praia, manifesta-se a fidelidade de uma família negra em que o negrinho, armado de um instrumento agrícola, acompanha a sua mãe, a qual, com a mão direita segura vigorosamente o machado destinado a derrubar as árvores das florestas virgens e a defendê-las contra a usurpação, enquanto com a mão esquerda, ao contrário, segura ao ombro o fuzil do marido arregimentado e pronto para partir, que vem entregar à proteção do governo seu filho recém-nascido. Não longe uma indígena branca, ajoelhada ao pé do trono e carregando à moda do país o mais velho de seus filhos, apresenta dois gêmeos recém-nascidos para os quais implora assistência do governo, único esteio de sua jovem família durante a ausência do pai, que combate em defesa do território imperial. Do lado oposto, e no mesmo plano, um oficial da marinha, arvorando o estandarte da independência amarrado à sua lanada, jura, com a espada sobre uma peça de canhão, sustentar o governo imperial. No segundo plano, um ancião paulista, apoiado a um de seus jovens filhos que carrega um fuzil a tiracolo, protesta fidelidade; atrás dele outros paulistas e mineiros, igualmente dedicados e entusiasmados, exprimem seus sentimentos de sabre na mão. Logo após esse grupo, caboclos ajoelhados mostram com sua atitude respeitosa o primeiro grau de civilização que os aproxima do soberano." (idem, pág. 570)
Os grifos no texto são nossos, para destacar a complexidade do discurso alegórico construído por Debret. Suas obras, difundidas em diversos suportes, inclusive em livros didáticos, acabaram por enfatizar uma imagem de transição harmônica e de engajamento popular a sustentar o Primeiro Império brasileiro.