A procissão de Corpus Christi era uma tradição em Lisboa desde o século XIII e resistiu até o início do século XX. Reunia a realeza, o clero, a nobreza e os populares em uma festa animada que misturava fé e folclore. A partir de 1387, D. João I (1357-1433) incorporou a figura de São Jorge, com armadura e cavalo, à procissão. Após vencer a batalha de Aljubarrota contra o Reino de Castela, o rei, que acreditava que sua vitória se devia à intervenção do santo, decidiu reformar o castelo de São Jorge, em Lisboa, e incluir o santo na procissão. Passam a acompanhar a imagem no cortejo os homens que trabalhavam com ferro, em diferentes ofícios, a figura alegórica do Homem de Ferro e os músicos negros que iam homenagear o santo e animar a procissão, com instrumentos de percussão e sopro.
Essa tradição medieval portuguesa passou a ser seguida também na colônia, como forma de se afirmar a presença, ainda que distante, do rei. Em muitas cidades do Brasil, a procissão de Corpus Christi e o cortejo de São Jorge aconteciam da mesma maneira que em Lisboa. No desenho (acima) do pintor cearense José dos Reis Carvalho (1800-1872), os músicos negros estão bem paramentados, com as roupas luxuosas com que iam ao cortejo. Carvalho destacou um com instrumento de sopro e outro, com um tambor. Em outro desenho (abaixo), o artista mostra o capitão, branco, montado a cavalo e também com roupa de gala.
O francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que foi professor de Carvalho, também deixou registrado em uma gravura o cortejo de São Jorge. Três músicos negros, com instrumentos de sopro, aparecem no lado esquerdo (abaixo), no centro, a estátua do santo em tamanho natural, provavelmente feita de madeira e papel machê, bem vestido e montado em um cavalo branco, ladeado por homens brancos, a pé ou a cavalo. “Os grupos compõem-se de uma parte dos músicos negros, da imagem de São Jorge presa à sela do cavalo sobre o qual ele é representado segurando um estandarte virado em sinal de humildade diante do Nosso Senhor; acompanham-no o primeiro lanceiro e, logo atrás, seu capitão das guardas com armadura completa segurando também uma bandeira. Apesar de ser a armadura de papelão pintado, vê-se o suor escorrer pelo peito e cair do queixo mal escondido pela viseira”, escreveu Debret, em seu Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2016).
No Rio de Janeiro, a população se reunia para acompanhar o cortejo da Capela de São Jorge até a Capela Imperial. Dali, São Jorge encabeçava a procissão de Corpus Christi. Suas roupas tinham bordados com fios de ouro, diamantes e, na época em que Debret fez a gravura, publicada em 1835, um escudo com as armas imperiais brasileiras. Os negros escravizados no Brasil tiveram sempre uma grande participação como músicos, não somente em eventos religiosos, mas também na casa de seus senhores. Somaram à musicalidade trazida de seus países na África ensinamentos que aprenderam aqui, muitas vezes com os jesuítas. Costumavam formar orquestras e ser alugados para animar festas. Até hoje São Jorge é venerado pela população negra brasileira. No Rio de Janeiro, todos os anos, no dia 23 de abril, procissões e missas lotadas são frequentadas tanto por católicos como por seguidores de religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. O santo católico, nascido na Capadócia, na Turquia, foi sincretizado com os orixás Ogum, no Rio de Janeiro, e Oxóssi, na Bahia. A imagem de São Jorge, o santo guerreiro que luta pela sobrevivência e pela liberdade, costuma estar presente em muitos desfiles das escolas de samba cariocas, onde continua a ser festejado pelos músicos negros.