Muito antes de se referir apenas aos Estados Unidos, "América" era um termo genérico criado para denominar a parte do planeta até então desconhecida pelos europeus, o também chamado Novo Mundo. Nos primeiros séculos da colonização, os artistas europeus tiveram que se fiar em relatos e algumas poucas imagens produzidas pelos exploradores para elaborar representações que alimentavam a imaginação e a curiosidade tanto de poderosos, como reis e a igreja, como dos homens comuns. Nos séculos XVI e XVII, artistas que nunca haviam saído da Europa produziram representações alegóricas da América, que seguiam a cartilha renascentista e depois barroca e faziam muito sucesso já que resumiam em imagens simbólicas o pouco conhecimento que se tinha a respeito do Novo Mundo e moldaram por muito tempo a percepção europeia sobre ele e sobre si mesma. Em comum, essas alegorias apresentavam sempre uma mulher nua ou quase, vegetação e animais exóticos e cenas de rituais antropofágicos retirados de contexto.
"Dentre as alegorias relacionadas ao novo continente, podemos destacar a pintura 'América' de Stephan Kessler (1622-1700). A obra, da segunda metade do século XVII, é um exemplo das representações de como seria a vida e a vegetação na América, a partir de cenas e personagens imaginados pelo artista, com ênfase na pureza animalesca com seres imersos no meio ambiente, em posição de igualdade e descritos em práticas não civilizatórias, como o canibalismo, proeminente no centro daquela tela. Essa visão fantasiosa, vinda muito mais da imaginação do que de um testemunho palpável, vai condicionar a produção de outras imagens desses lugares, a ponto de, somente no século XIX, haver uma preocupação de se retratar mais fielmente a realidade (...), principalmente com as expedições naturalistas, que buscaram registros mais verídicos, embora ainda condicionados com esta visão do exótico", escreveu a pesquisadora Ana Cecília Araújo Soares de Souza em sua tese de doutorado Os museus de Pedrosa: uma contra narrativa para a arte brasileira (Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2023).
Na pintura (acima), que apresenta um casal de indígenas de sapatos, "permanece o caráter fantasioso das composições realizadas por Kessler, que, ao representar essas regiões exóticas (...) demonstra um enorme desconhecimento sobre elas, baseando-se em concepções oriundas da organização social e cultural europeia. As duas figuras principais (...) são casais, devidamente acompanhados dos seus filhos, uma interpretação europeia sobre a noção tradicional de 'família'. Em América, essa associação é levada a metáforas ainda mais extremas e contraditórias. Se, ao fundo, o modelo da mãe que amamenta o bebê índio se assemelha ao das tradicionais madonas com o menino Jesus, no primeiro plano, à direita, a mãe macaca parece fazer o mesmo, aparentemente 'rebaixando' o indígena a uma condição animalesca, que é de fato coadunada pela proximidade de outros animais selvagens. Tratar-se-ia de uma condição sub-humana, como se debatia nos círculos filosóficos da época, que é reforçada pela representação da cena canibalesca no centro da tela. Esta faz referência aos banquetes tupinambás que, na imagem, perdem toda a referência de sua origem ritualística e esporádica para se apresentarem como um corriqueiro churrasco de domingo", informa o catálogo da Pinacoteca de São Paulo (São Paulo: Instituto Cultural J. Safra, 2016. Coleção museus brasileiros).
Para realizar sua pintura, Kessler recorreu às gravuras do francês Charles Le Brun (1619-1690), pintor da corte de Luís XIV, e do belga Theodore de Bry (1528-1598), que se transformou no mais famoso ilustrador de viagens da sua época, sem nunca ter viajado. As imagens de Americae Tertia Pars, o terceiro volume dos 13 que compõem a obra, podem ser vistas aqui neste portal (abaixo).
Theodore de Bry, para produzir essas imagens, se inspirou nas xilogravuras publicadas, em 1557, no livro Duas Viagens ao Brasil do aventureiro alemão Hans Staden (c.1525-1576), que esteve no Brasil entre 1547 e 1554, foi prisioneiro dos tupinambás por nove meses e voltou vivo para contar. Essas gravuras também estão presentes neste portal (abaixo).
Como se pode ver, foram as cenas de rituais antropofágicos, muitas vezes retiradas de contexto, que atraíram a atenção desses artistas e também dos consumidores curiosos. Se durante muito tempo essas representações serviram para reafirmar aos europeus sua pretensa superioridade civilizatória, aos poucos foram perdendo seu poder de sedução, preteridas pelos interesses econômicos que a América começou a despertar.
No frontispício do livro America (abaixo), publicado em 1671, de Arnoldus Montanus (1625-1683), um holandês que nunca saiu da Europa, a alegoria do novo continente traz diversos elementos comuns a esse tipo de ilustração, como a mulher seminua, os povos originários, animais exóticos e a vegetação, mas já não inclui nessa paisagem cenas de antropofagia. Nessa imagem, a mulher, que simbolicamente representa a América, distribui pedrarias e ouro para os que estão debaixo dela.