Os viajantes que chegaram no Brasil no início do século XIX encontraram terras já marcadas por inúmeros episódios de queimadas, que ocorriam desde antes da colonização. Promovidas, desde sempre, por todos os povos, indígenas, europeus e africanos, as queimadas tinham diferentes intensidades e objetivos. "Os percursos dos naturalistas pelo Brasil Central ocorriam quase sempre durante o outono e o inverno, já que, durante a estação chuvosa na primavera e no verão, os caminhos ficavam perigosos, sem contar as febres que proliferavam. Como as queimadas ocorriam preferencialmente de julho a outubro, entre o auge da seca e o retorno das chuvas, os naturalistas se viam recorrentemente imersos em meio às queimadas típicas da estação, disseminadas por fazendeiros, roceiros e criadores de gado", escreveu o pesquisador André S. Bailão em seu artigo "Histórias do fogo e das transformações de paisagens no Brasil Central para naturalistas estrangeiros no século XIX" (Revista Estudos Históricos, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, n. 36, set-dez 2023).

O bioma do cerrado, a região do Brasil Central, se espalha pelos estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, parte de Minas Gerais, Bahia e Distrito Federal e é caracterizado por sua vegetação baixa, com variedade de capins, as gramíneas, e arbustos e uma grande biodiversidade. O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que viajou pelo Brasil entre 1816 e 1822, passou muito tempo entre Goiás e Minas Gerais e em seus livros fez muitas críticas à prática. "No relato de uma de suas viagens por Minas Gerais, Saint-Hilaire escreveu que, com as queimadas e derrubadas, os brasileiros pareciam terminar de destruir o que a mineração havia começado. Num tom pessimista, o botânico levantou a possibilidade de que os esforços dos naturalistas de coletar e classificar as plantas do Brasil se tornariam um mero registro sobre o passado, um 'monumento histórico' frente à devastação", escreveu Bailão, no artigo citado.

Campi Aestate Sicca Ignibus Adusti in Prov. Minarum parte occidentali, spectaculum nocturnum

Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), naturalista alemão autor do principal compêndio da flora brasileira, também se preocupou com os efeitos nocivos das queimadas na degradação do solo a longo prazo e na perda de biodiversidade. Na gravura acima, parte de sua obra Flora Brasiliensis, produzida entre 1840 e 1906, podemos ver o espetáculo noturno de uma queimada, com os viajantes observando do lado esquerdo da imagem e emas correndo do fogo do lado direito. No texto em que comenta a imagem, Martius escreveu: "O agricultor brasileiro, cuja prática e conhecimento de cultivo diferem bastante da disciplina regular dos prados com colheitas organizadas, acredita ser vantajoso mandar queimar essa palha seca dos campos, o que se faz facilmente com a ação do fogo nas áreas mais secas. Acredita-se que isso serve como um estímulo à fertilidade do solo, com efeitos benéficos das queimadas. (...) No fim da estação seca, quando as plantas estão completamente mortas, os fogos são acesos considerando a direção dominante do vento. Essas queimadas eliminam quase completamente as plantas anuais, que, se não tivessem dispersado suas sementes antes, desapareceriam totalmente dos campos. No entanto, a proporção de plantas anuais não é tão grande. As ervas, arbustos perenes e árvores resistem às chamas rápidas, regenerando-se no ano seguinte a partir de rizomas e ramos mais antigos. (...) Acrescentamos apenas que os viajantes, atravessando esses desertos incendiados, frequentemente observam nuvens — escuras durante o dia e cintilantes no topo à noite — formadas por cinzas e fuligem levadas pelos ventos pelos campos, apresentando um espetáculo aterrador; semelhante às colunas de nuvens que acompanharam os israelitas durante sua jornada pelo deserto (Êxodo, cap. XIII, v. 21)".

Campos Gegend bei Lagoa Santa

Entretanto, alguns naturalistas estrangeiros destacaram também os benefícios que as queimadas podiam trazer para o solo, como o botânico dinamarquês Eugenius Warming (1841-1924), que viveu no Brasil entre 1863 e 1866 como secretário particular do naturalista Peter Wilhelm Lund (1801-1880), que se estabeleceu em Lagoa Santa, em Minas Gerais, onde encontrou e pesquisou ossadas de diversos fósseis. Acima, a gravura do naturalista alemão Hermann Burmeister (1807-1892) retrata os campos próximos da Lagoa Santa.

"Em relação às vegetações, Lund e Warming falam de estratégias de adaptação e de sobrevivência das plantas frente aos constantes incêndios. A ocorrência de ervas perenes diminuía, pois não resistiam às chamas. Os troncos das árvores de casca grossa ficavam chamuscados, mas elas permaneciam vivas. Em relação às plantas que sobrevivem no subsolo, por meio de bulbos resistentes, ou por meio de sementes, como as ervas anuais, o fenômeno estimulava seu desenvolvimento - o que nos indica como os naturalistas se atentavam para o caráter produtivo, e não apenas destrutivo, do fogo. (...) Depois de uma queimada, era como se a própria primavera se adiantasse. Os naturalistas percebiam que os campos e cerrados mais ricos em espécies eram aqueles queimados em outubro, quando as plantas se favoreciam da adubação das cinzas e da umidade que retornava", escreve Bailão. Para esses naturalistas, "o fogo nos campos e cerrados parecia se mostrar distinto dos incêndios das matas úmidas - estas se degradavam continuamente, com a diminuição da diversidade e perda de fertilidade do solo e de umidade. Já no Brasil Central, os naturalistas percebiam, de modo contrário, que campos se fertilizavam e diversificavam com o fogo".

Segundo dados da plataforma Monitor do Fogo, do MapBiomas, "no Cerrado, 9,7 milhões de hectares foram queimados entre janeiro e dezembro de 2024, sendo que 85% (ou 8,2 milhões de hectares) ocorreram em áreas de vegetação nativa, onde houve um aumento de 47% em relação à média dos últimos 6 anos". Em todo o território brasileiro, mais de 30,8 milhões de hectares foram queimados em 2024, área maior que a da Itália, e a Amazônia foi o bioma mais afetado (17,9 milhões de hectares).