Durante o século XVIII e início do XIX, os rituais fúnebres faziam parte do cotidiano da sociedade brasileira, principalmente nas grandes cidades. Dos mais ricos aos escravizados, boa parte da população acreditava que a morte não era o fim da vida, e sim, a passagem do espírito para uma outra. O destino da alma seria assegurado pelos rituais que aconteciam antes, durante e depois da morte.
Os registros dos rituais fúnebres que integram a Brasiliana Iconográfica revelam uma distinção no tratamento da morte de acordo com as classes sociais. A desigualdade presente na sociedade escravista brasileira era tão perversa no mundo dos vivos como no dos mortos.
Nesta gravura do francês Jean-Baptiste Debret, vemos, na primeira imagem, diferentes cortejos fúnebres. Em um sepultamento luxuoso, era comum a presença de sacerdotes, párocos e importantes membros do clero que realizavam cerimônias de encomendação da alma, missas e ofícios. Na maioria da vezes, as famílias contratavam uma orquestra ou, pelo menos, um coral. As casas pelas quais o defunto passava desde sua residência até a sepultura eram decoradas com velas e tochas. As fitas e franjas dos panos funerários que cobriam a carruagem revelavam a riqueza e o reconhecimento da pessoa morta. Quanto mais gente no funeral, mais prestígio o morto ou a sua família tinham. Esses cortejos, às vezes, arrastavam centenas de pessoas pelas ruas, inclusive com a presença de carpideiras, que rezavam e choravam pelos mortos. O local da sepultura dentro da Igreja também tinha significado: quanto mais perto do altar, mais importante era o morto.
Na mesma imagem, vemos dois escravizados carregando uma rede. “O cortejo mais simples realiza-se com o corpo sendo transportado numa rede por dois negros de ganho, chegando a custar no máximo dois francos”, relatou Debret. Pobres, indigentes, suicidas, pessoas executadas e escravizados, quanto tinham algum tratamento na hora da morte, ganhavam cerimônias simples, sem carruagens nem multidões. A prática de abandonar o corpo dos cativos em terrenos baldios ou em praias era tão comum que foi necessária uma lei que estabelecesse o pagamento de 400 réis pelos senhores para que a Santa Casa de Misericórdia realizasse o sepultamento dos escravizados em local apropriado.
Com doenças adquiridas ao longo da diáspora africana, alguns escravizados já desembarcavam mortos; outros, morriam enquanto estavam em quarentena nos mercados de escravos. Seus corpos eram enterrados em cemitérios não ligados a templos católicos, mantidos por obras de caridade. No Rio de Janeiro, por conta do alto número de africanos que chegavam nos navios negreiros, foi criado um cemitério específico para essas pessoas. Ser sepultado em lugares como esse era humilhante, já que as covas, na maioria das vezes, eram coletivas, rasas, e estavam sujeitas à ação de animais em busca de alimento. Por isso, uma das alternativas que os escravizados encontravam para assegurar a paz depois da morte era se associarem às irmandades, que garantiam funerais, missas e tumbas.
Os escravizados, geralmente, não eram sepultados no interior das igrejas. Isso só acontecia quando os senhores ou as irmandades intervinham. Também era raro um cativo ter um funeral que se aproximasse ao dos mais ricos. Isso acontecia, principalmente, quando quem morria era um rei africano ou um de seus descentes, reverenciados mesmo longe de sua terra natal e em situação de escravização. Essas celebrações agrupavam milhares de pessoas. Sobre elas, Debret escreveu “(...) É de se observar que esses ilustres ignorados, privados publicamente de suas insígnias, continuam sendo venerados por seus vassalos, hoje companheiros de infortúnio no Brasil (...). Ao morrer, ele é exposto numa mortalha, estendido em sua esteira de palha, com o rosto descoberto e um lenço amarrado na boca.(...) Também é visitado por delegações de outras nações negras, representadas cada qual por três dignitários (...). O cortejo dirige-se à igreja, certamente uma das quatro mantidas por irmandades negras: a Velha Sé, N. Sra. da Lampadosa, N. Sra. do Parto ou São Domingos”.
Na gravura de Debret que registra o funeral de um rei negro, os cativos que acompanham o cortejo na rua dançam, soltam foguetes, tocam tambores. Quando o corpo era levado ao interior da igreja para o sepultamento, o ritual era católico, mas, do lado de fora, a celebração seguia os costumes da cultura africana e chegava a durar sete dias.
A roupa da pessoa que morria, chamada mortalha, também tinha significado. Usar o hábito de santos, por exemplo, evocava a proteção dos mesmos e significava estar mais perto de Deus. Por isso, os mortos eram vestidos com as roupas de Santo Antônio, São Francisco, Nossa Senhora do Carmo. Há relatos também de que mulheres casadas usavam mortalhas pretas. Os escravizados, na maioria das vezes, usavam peças brancas, porque essa era a cor fúnebre de muitos grupos africanos. Também no catolicismo, o branco fazia alusão à roupa de Jesus Cristo. As crianças usavam as mortalhas de Nossa Senhora da Conceição, São Miguel Arcanjo ou São João Batista.
Os funerais das crianças negras, dos anjinhos como eram chamadas quando morriam, não eram definidos sempre pela posição social das suas famílias, e sim, dos seus senhores. O registro abaixo, também de Debret, mostra em primeiro plano um enterro de uma criança transportada em uma cadeirinha, com um caixão enfeitado com buquês de flores e uma coroa na cabeça. “Mas esse luxo é em geral reservado apenas às casas ricas que almejam exercer dignamente uma obra de caridade para um anjinho”, relatou o artista. Em segundo plano, representa um funeral mais pobre, no qual a criança é carregada em um tabuleiro, coberto com uma toalha. Alguns viajantes relataram que geralmente não se chorava em funerais de crianças e descreveram um clima até festivo. Uma das crenças que se tinha na época era que chorar poderia molhar as asas dos anjos que vinham buscar a criança e que, no final das contas, era positivo ter anjinhos protegendo as famílias.
A partir da segunda metade do século XIX, a ideia de conviver com os mortos - – seja pelos cortejos nas ruas ou nas tumbas das igrejas – foi sendo contestada por teorias higienistas europeias, que afirmavam, por exemplo, que os gases decorrentes da decomposição do corpos faziam mal aos vivos. Em pouco tempo uma lei estabeleceu que os mortos fossem retirados dos centros urbanos, e irmandades, paróquias e conventos viram-se obrigados a acabar com o costume de sepultar as pessoas dentro dos templos católicos. O surto de doenças, como o da cólera na década de 1850, contribuiu para afastar os mortos do cotidiano da cidade.