O francês François Auguste Biard desembarcou no Brasil em 1858 com um objetivo: fazer contato e registrar as populações indígenas brasileiras. Quando chegou por aqui, com 60 anos, já era um artista experiente: estudou na École des Beaux-Arts [Escola de Belas Artes], em Lyon, sua cidade natal. Na década de 1820, transferiu-se para Paris e, atuando como professor de desenho da Marinha, viajou para Espanha, Grécia, Síria e Egito. Ao longo dos anos 1830, alcançou fama como artista, tornando-se retratista oficial da corte francesa. Empreendeu outras viagens pelo continente europeu, registrando povos e costumes e coletando objetos com interesse antropológico.
A viagem mais importante na carreira de Biard foi a que fez entre 1839 e 1840 ao círculo ártico. Partindo de Paris, reuniu-se à expedição científica comandada pelo zoólogo Joseph Paul Gaimard à ilha de Spitsbergen, no norte da Noruega. No retorno, Biard, que não viajava como artista oficial, separou-se da expedição e seguiu para a Lapônia. Com base no material produzido durante essa viagem, realizou várias pinturas de paisagens e costumes dos povos da região, apresentadas no Salão de Paris de 1841.
Com o intuito de encontrar os “habitantes selvagens das florestas”, quando chegou ao Brasil, Biard permaneceu por algum tempo no Rio de Janeiro, o suficiente para organizar uma viagem maior até o Pará e o Amazonas. O artista, inclusive, foi convidado a se tornar professor da Academia Imperial de Belas Artes (Aiba), mas recusou o convite. Da viagem à região amazônica, resultou no livro de relatos Deux Années au Brèsil [Dois anos no Brasil], publicado em 1862, depois de retornar a Paris. A publicação é ilustrada com gravuras de Edouard Riou com base nos desenhos de Biard.
Além do livro, também resultaram dessa viagem algumas pinturas a óleo, entre elas, Índios da Amazônia Adorando o Deus-Sol, de 1860, que integra o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo e está disponível na Brasiliana Iconográfica. Biard não produziu a pintura pela observação direta, mas por meio de relatos contados por pessoas com as quais se encontrou no Amazonas. Em um trecho de Deux Années au Brèsil, fez o seguinte comentário: “[O índio] João me contou também que índios habitantes acima das cataratas do Madeira dirigem preces ao sol, como faziam os antigos peruanos”.
Índios da Amazônia Adorando o Deus-Sol foi uma das seis pinturas de Biard expostas no Salão de Paris de 1861. Na imagem, a forma como o artista representou os personagens traz o senso de civilização exótica perseguido e, neste caso, imaginado por ele. Os indígenas são marcados por uma luz que invade a tela e que traz uma sensação de magia em terras tropicais, ressaltada pelas espécies vegetais do entorno. Essa ênfase no exótico e a negação do que é familiar ao artista – no caso de Biard, do ambiente urbano – são alguns traços que aproximam seus trabalhos do romantismo vigente na época, na Europa e no Brasil. Por aqui, a corrente romântica foi incentivada nas artes e na literatura por d. Pedro II, que financiou esse movimento de exaltação do exótico como símbolo tropical. O imperador, aliás, demonstrou bastante interesse pelo trabalho de Biard: convidou-o a se instalar no Paço da Cidade e encomendou a ele retratos de toda a família imperial.
Esse olhar romântico fica mais evidente quando comparamos a pintura de Biard com a de outros artistas viajantes que vieram ao Brasil com objetivos científicos. É o caso de Maximilian zu Wied-Neuwied, cujas obras também estão disponíveis para consulta na Brasiliana Iconográfica. O príncipe alemão coletou, entre 1815 e 1817, extenso material etnográfico e produziu centenas de desenhos e anotações que demonstram seu especial interesse pelas populações indígenas brasileiras, usados como referência até hoje. Saiba mais aqui.
Nas gravuras de Wied-Neuwied e de outros artistas e cientistas viajantes, como Johann Baptiste von Spix e Carl Friederich Phillip von Martius, nota-se uma preocupação em descrever o indígena brasileiro com suas características físicas e comportamentais. “Essas gravuras, pensadas como registros da observação da realidade, revelam as características de diversos povos indígenas com a objetividade que se atribuía na época à imagem científica”, explica Valéria Piccoli no catálogo da exposição François Auguste Biard: o indígena e o olhar romântico, exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2010. Já nas pinturas de Biard, as cenas e rituais imaginados apresentam-se em meio a uma mítica floresta amazônica, sem preocupação com a objetividade científica. Segundo Ana Maria Belluzzo, em O Brasil dos Viajantes, “O indianismo de Biard é resultante da convergência de características dessa personalidade multifacetada, que reúne o perfil de explorador naturalista a imaginação fantasiosa do artista romântico. (...) Biard conjuga a prática de retratista com a observação naturalista, demonstrando certo talento na pintura fisionômica dos índios. Por outro lado, as cenas no interior da floresta não são comandadas pela intenção documental, mas movidas pelo mistério que o homem cansado da cultura europeia encontra nas culturas alienígenas e carrega de imaginação fantástica”.