Apesar de pouco ter saído do Rio de Janeiro e de, provavelmente, nunca ter tido contato com muitas etnias indígenas, o pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) se dedicou a retratar algumas delas. Em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2016), o artista incluiu três gravuras que mostram os temidos guaicurus, indígenas que se tornariam míticos pela domesticação de cavalos.
Os guaicurus ficaram conhecidos como grandes cavaleiros e uma das gravuras mais reproduzidas de Debret mostra um grupo durante um ataque: "para esconder-se do inimigo, imaginam um ardil que dá bem ideia de sua destreza e sua perícia de cavaleiros. Cada guerreiro, unicamente apoiado no estribo direito, segura a crina com a mão esquerda e assim se mantém suspenso e deitado de lado, no sentido do corpo do cavalo, conservando essa atitude até chegar ao alcance da lança; ergue-se então da cela e combate com vantagem, em meio à desordem provocada pelo ataque tumultuoso", escreveu o francês em seu livro.
Os guaicurus viviam da caça, da pesca, da coleta e do saque na região do Chaco, próximos ao rio Paraguai, antes da chegada dos colonizadores. Conheceram, ainda no século XVI, os primeiros cavalos trazidos pelos espanhóis. Esses animais mudaram a relação deles com outras etnias que viviam na região. "O aventureiro alemão Ulrich Schmidel, que atravessou o Chaco em 1542, compara as relações que observou entre grupos Mbayá-Guaikuru e outros índios, com as que existiam entre camponeses e nobres de sua pátria. Essas tendências de domínio seriam extraordinariamente desenvolvidas, nos anos seguintes, com a adoção do cavalo, no que foram os pioneiros na América do Sul. Como cavaleiros, revolucionariam sua vida econômica, social e política, levando a redefinição da cultura em torno desse novo elemento muito mais longe que as tribos equestres da América do Norte, pois, enquanto aquelas usavam o cavalo apenas como arma defensiva, os Cavaleiros do Chaco impuseram, com ele, seu domínio sobre inúmeras outras tribos, reduzindo-as a vassalagem, e mantiveram sob constante ameaça, por mais de três séculos, os estabelecimentos europeus, chegando a representar o maior obstáculo à colonização do Grande Chaco e um papel de maior destaque nas disputas entre espanhóis e portugueses, jesuítas e bandeirantes, pelo domínio da bacia do Rio Paraguai", escreveu o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) em seu livro Kadiwéu - Ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza (Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1980), que reúne textos que escreveu no final da década de 1940, quando viveu entre os kadiwéus.
Os guaicurus viviam na região do Chaco junto com a etnia dos mbayás. Com o tempo, os dois grupos se fundiram e se deslocaram para a margem leste do rio Paraguai na área que hoje conhecemos como o pantanal mato-grossense. Seus herdeiros são os kadiwéus, que vivem até hoje na região.
Na gravura acima, vemos um grupo de indígenas guaicurus se deslocando em busca de novas pastagens. Eles viajavam com os animais que passaram a criar e vender. Até 1720, foram pouco incomodados pelos colonizadores portugueses, que só se aproximaram deles depois da descoberta de ouro em Cuiabá. As expedições conhecidas como monções, grupos de exploradores que navegavam de São Paulo a Cuiabá pelos rios, eram constantemente atacadas pelos guaicurus, que se tornaram um problema para a coroa portuguesa. Somente em 1791, os portugueses conseguiram um tratado de paz com os guaicurus, que passaram a ser seus aliados na luta contra os espanhóis que tentavam avançar na região.
Essa união atravessou o século e os guaicurus (ou kadiwéus, como já eram então chamados) foram decisivos como aliados dos portugueses na Guerra do Paraguai (1864-1870). Por isso, teriam recebido de d. Pedro II o direito às suas terras, mas tiveram que seguir lutando contra militares e fazendeiros para ter esse direito reconhecido. A terra indígena kadiwéu fica hoje no estado do Mato Grosso do Sul, em parte no pantanal mato-grossense. O seu território tem como limites naturais a oeste os rios Paraguai e Nabileque, a leste a Serra da Bodoquena, ao norte o rio Naitaca e ao sul o rio Aquidaban.