A baiana Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) conheceu a inglesa Maria Graham (1785-1842) em agosto de 1823, quando foi ao Rio de Janeiro receber uma comenda de D. Pedro I (1798-1834), por sua atuação na guerra travada na Bahia contra os portugueses depois do grito do Ipiranga que, em 7 de setembro de 1822, não havia garantido a independência do Brasil. Maria Quitéria é conhecida como a primeira mulher brasileira a oficialmente integrar o exército e sua história já foi tema de diversos sambas enredo no Rio de Janeiro e de um trio elétrico na Bahia. A gravura (abaixo) feita a partir de um desenho do inglês Augustus Earle (1793-1838), publicada no livro de Maria Graham, Journal of a voyage to Brazil: and residence there, during part of the years 1821, 1822, 1823, lançado na Inglaterra em 1824, estampa até hoje os livros didáticos e é, provavelmente, o único retrato conhecido da heroína.

Dona Maria de Jesus

Nascida em São José de Itapororoca, município de Feira de Santana, na Bahia, Maria Quitéria aprendeu a caçar e desenvolveu o gosto pelas armas com seu pai que, quando recebeu a visita de um emissário do governo convocando os homens para a guerra, disse que não podia colaborar porque não tinha filhos. Quitéria decidiu, então, que iria assumir esse lugar. Foi para a casa da irmã e com seu apoio e o do cunhado, José Cordeiro de Medeiros, cortou os cabelos, vestiu as roupas dele e se encaminhou para a cidade de Cachoeira, onde se alistou. O disfarce de Maria Quitéria, que ficou conhecida como soldado Medeiros, usando o nome do cunhado, durou pouco, mas suas habilidades para atirar e manusear armas fizeram com que ela permanecesse no batalhão.

Lutou no Batalhão dos Periquitos, assim conhecido por causa do uniforme com detalhes verdes, nas batalhas da Pituba, de Itapuã e na foz do rio Paraguaçu, onde comandou cerca de 40 mulheres, que entraram na água para lutar contra os soldados portugueses que lá estavam. Após o fim da guerra, ela foi para o Rio de Janeiro, onde foi recebida pelo imperador d. Pedro I e recebeu dele o posto de alferes e foi condecorada com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro.

Ainda no Rio de Janeiro, conheceu a escritora Maria Graham que estava morando no Brasil há cerca de dois anos. Além da publicação do retrato, Graham fez em seu livro a descrição mais conhecida e minuciosa que se tem de Maria Quitéria: "29 de agosto. - Recebi hoje uma visita de D. Maria de Jesus, jovem que se distinguiu ultimamente na guerra do Recôncavo. Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino. Que diriam a respeito os Gordons e os Mac Donalds? O traje dos velhos celtas, considerado um atrativo feminino?!", escreveu a admirada Graham no seu livro (Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país: durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. Tradução: Américo Jacobina Lacombe. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956).

"Ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particularmente masculina na aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra sua modéstia. Uma coisa é certa : seu sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a procurasse. Não há nada de muito peculiar em suas maneiras à mesa, exceto que ela come farinha com ovos ao almoço e peixe ao jantar, em vez de pão, e fuma charuto após cada refeição, mas é muito sóbria", escreveu a inglesa.

O fato de ter se disfarçado de homem para poder lutar na guerra, numa época em que a presença das mulheres no exército era proibida, certamente contribuiu para a popularidade de Maria Quitéria, que até hoje atrai a atenção de estudiosos, tanto com um viés patriota, como feminista ou, mais recentemente, de questões de gênero. Outras mulheres conhecidas, como a religiosa Joana Angélica (1761-1822), assassinada ao tentar impedir a entrada de militares portugueses à procura de rebeldes no Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, em Salvador, e Maria Felipa de Oliveira (?-1873), escravizada liberta que teria lutado contra os portugueses na Ilha de Itaparica, têm sido objeto de estudos recentes que também buscam identificar mais participantes do sexo feminino nas lutas pela independência.

Apesar de sua fama, Maria Quitéria, depois de seu momento de glória no Rio de Janeiro, voltou para a Bahia e passou a viver de sua pensão como alferes. Caiu no anonimato e pouco se sabe de sua vida depois que saiu do exército, apenas que se casou, teve uma filha e morreu pobre, em 1853, de uma inflamação no fígado.